Dias de capinagem

domingo, 25 de outubro de 2009

["Liubliú", poema anel de Maiakóvski, um singelo "Amo" feito poema no tomar e repetir das letras iniciais de Lília Iúrievna Brik...(L+Iu +B+ L+Iu) - versão tipográfica de El Lissitski (1923)]


O casaco tricotado de Antoine...

Antoine, quando cheguei, já havia morrido há muitas décadas. Voltamos, porém, 70 anos, de tal sorte que o encontrei vivo, metido em seu casaco tricotado e colorido. Logo ficamos amigos, mas era coisa muito ao nosso modo. Apenas não nos queríamos o mal, e olhavamo-nos com muito carinho por entre os corredores da estalagem. Quando em hora do almoço, as batatas eram-me passadas por suas mãos. Desconfiou da inversão do tempo ao ver entre minhas coisas, os livros da Biblioteca com sua estética futurada. Se os abrisse, veria a data determinada da entrega, e assim, descobriria o giro da ampulheta. Debaixo da escada havia um abajur sobre uma mesa ovalada, pequena e marrom, há muitos anos pertencente aos estalajadeiros arrebata que fora em um antigo leilão. A mesinha era iluminada pela luz quase sumida do abajur, e quando se queria ler era para lá que se ia. Num desses dias, fui surpreendida por Antoine, com uma caderneta amarela nas mãos anotando frases soltas de seu pensamento. “O único respeito devido, é entre nós”. Ouvi súbito no limiar do quadrado. Assustou-se, enfiando num bolso interior do casaco o objeto de suas considerações. Condiria com meus modos para-dentro, retirar-me ao vê-lo, rossar os dedos talvez, nas sempre-vivas-sempre-mortas do jardim dos fundos. Naquele dia não era o caso, porém, pois às vezes os olhos tomavam um ar desafiador, e nada temiam em sua exterioridade. Café? Não, Antoine. Obrigada. Sofro de enxaqueca, cafés, doces e muita luz são coisas que preciso evitar. Chá? Temos chá nessa época do ano? Por que não senta? A pergunta vinha de alguém que olhava para o chão e titubeava, embora fosse certamente o caráter mais irretocável que conheci em belas considerações sobre os devires da vida, não me deixando atrever-me à suposição de qualquer intenção. Sabia eu, porém, que Antoine tinha o coração simples, e que por isso, era bom, não havendo perigo possível naquele colóquio. Sempre desejei a solidão de nossas idéias, mas a estalagem com seu infinito movimento de hóspedes passantes, nunca havia antes permitido. Se o tivéssemos forçado, todos perceberiam. Antoine e eu preferíamos, em segredo, a determinação do acaso, como naquele dia embaixo da escada.

A cicatriz...

Havia na mão de Antoine uma cicatriz. Descobri depois, ser apenas uma marca de nascimento, sinal de reconhecimento de espírito sutil. Antoine às vezes não me entendia, eu tinha de repetir as coisas, mas não me irritava por isso. As coisas com maiores determinações e portanto, mais complexas, podia ele entendê-las num rápido passar de olhos, aquelas simples, porém, olhava para cima, piscando os olhos devagar até entendê-las. Esquecia coisas por todos os lugares. Perdia coisas por todos os lugares. Tinha os cabelos em forma de espiral e olhos muito negros que me lembravam uma criança. Penso que foi por isso que me apaixonei por dois ou três dias pelo moço do terceiro quarto: os olhos nigérrimos e as mãos difíceis de descrever eram de um menino que saltava do corpo de um homem belo, ao modo helênico. Adorava sua voz. Com ela tudo se podia dizer. Não tinha receio algum se perto de Antoine, e foi assim por três dias. Mas depois, veio o começo do mundo e as implicações do tempo, e tudo evanesceu, como o que sobra do copo de água que se joga à calçada quando somos viajantes e paramos em porta alheia para matar a sede da andança. Não chorei por Antoine, mas por deixar-me mover por um corpo e sua força estranhos à minha autoridade interna. Não era coisa pensada, era o que tinha de ser. Antoine preso à escada para sempre. O amor significou nada mais que ter a ocasião de machucá-lo, e ainda assim não o fazer. Saudades de olhá-lo apenas, sem atrapalhar, porém, sua imersão distraída no mundo.


(Fragmento de algo maior...)

1 comentários:

Rafael disse...

Recado pra Antoine:

Eu li por aí que tem coisas que só funcionam no gerúndio...

Assim é o Amor...


; )