Antoine voltou a pé

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011



"O Louco" - Mauricio Takiguthi


Antoine voltou, sem que nunca eu soubesse como. Verifiquei várias vezes seu triste fim, toquei com os dedos o líquido verde que lhe escorria pelo nariz, fechei seus olhos para que não assustasse ninguém a vitrina adoecida de sua morte encomendada pelo costume negro de meu espírito.

Colhi as flores, fiz o café, um pouco amargo, é certo. Levei aos ombros a pá mais pesada para garantir o profundo do lugar de desova de seu corpo inoperante. Eu mesma. Tudo. Inclusive coisas pequenas como o enlaçar dos dedos sobre o peito fatigado da luta contra o travesseiro que usei, outrora, para lhe roubar a corrente de ar. Inclusive a camisa branca com listras pretas e o suspensório sobre a calça xadrez, onde escondida no bolso direito, encontrava-se ainda a caderneta amarela que, por anos, salvara no fenômeno as ideias de Antoine, lá, embaixo da escada, à luz imóvel do velho abajur.

Estava morto, nada vivo teria lábios tão frios. Ocorre-me, porém, a cruel possibilidade da dúvida, a faca cega do engano afiada na pele, na ausência de pedra-pome. E se Antoine me assistisse com um meio olho aberto, de soslaio, rindo por dentro de minha crença na eficácia de minhas próprias mãos? E se tudo não passasse de erro? E se o frio nos lábios fosse coisa dos meus lábios apenas, impressão de minha refratária condição?

A morte era um rato metafísico, roedor espectral que rondava agora a minha carne, pois é sabido que, aquele que escapa a uma emboscada, segue tentado invariavelmente a reproduzi-la na condição invertida de arguto algoz. Antoine não me sorriria, pois também é sabido que, quem não morre de susto, segue tentado a reproduzir no outro esse mesmo susto e, assim, quem espera, como eu, cai num soluço implícito que por nada quer passar – como se soubesse num lugar interno já ser essa hora coisa marcada.

Restava-me a capitulação. Depois de carregar um corpo morto com o dobro do meu peso por horas, dias, talvez semanas, meses de presença morta, alucinógena, debilitada, tive a impressão de que encontrara um lugar distante. Percebo, agora, que era, pelo contrário, muito perto, pois vejo que Antoine voltou a pé.

Devia eu ter-lhe quebrado as duas pernas no exercício de minha maldade, vê-lo sofrer, banhada de água doce e de veneno e, desse modo, ter adiado o estranho problema, pois com o trauma de seus membros, ele certamente demoraria. Não pensei na hora, e assim pago por isso: será este então o meu fim? Nego-me, no entanto, a pagar por isso: em minha bolsa de mão, a solidão de uma última moeda. Aquela que se destina ao jogo de cara ou coroa que terei de fazer a cada bifurcação.

Meus cabelos começaram a cair, meu corpo dança outra vez no vestido de flores que, de repente, pareceu bem maior, como Alice e os pedaços de sonho que a faziam esticar para fora e para dentro. Em meu caso, porém, são pedaços de um pesadelo. Antoine voltara e, mesmo se nunca fosse imagem na minha retina, velado em uma suspeita obsessiva, seria mais que possibilidade: a irrefutável certeza do assombramento de calafrios.



(Extraído de Eu tenho medo de Górki & outros contos, 2011)


14 comentários:

Anônimo disse...

PARA CALOU, TIGELAMOROSADMIRADAMENTE

Que Antoine volte a pé
Dá-se porque range a porta;
Porque sou, eu mesma, a morta,
Sou o Quem o qual ele é.

Ádlei Duarte de Carvalho disse...

Amiga Calou,

Esse é um dos textos de que mais gostei na sua exuberante obra. Um primor!

Abraço!

Ângela Calou disse...

Sr. Poeta,
tão linda esta quadrinha! Perfeita fotografia das intenções de Antoine-escrito, do medo daquela morta que estala passos e range a porta. Beijinho caloumínico!

Querido Ádlei,
Muito obrigada pela visita e pelo comentário. Os textos dedicados a Antoine são os que mais gostei de ter escrito! Grande abraço!

MaRio Rafael disse...

Muito feliz aqui por ver a casa assim nova, outras cores na/da mesma morada. Voltarás a postar inéditos aqui? Diga que sim! Eles eram o melhor de tudo da época que eu por cá tbm me arriscada.
Abraços.

Ps: estou procurando a surdez do teu Beethoven...

Denise SCARAMAI disse...

Angela,
este também é um dos meus contos prediletos do teu livro!
Antonio é um nome que 'aparece' há anos em meus familiares... por isso sinto uma afinidade imediata, que somada ao teor da história, resultou-me muito especial!

caríssima Calou, que 2012 te traga boas surpresas e recompensas! que seja inesquecivelmente bom!

um beijo

Ângela Calou disse...

Rafa, que bom saber de tua visita! Respondendo à tua pergunta, as postagens de alguns textos que compõem o Górki continuam, mas pretendo sim postar os pequenos pedaços de desaviso não-partilhado, as atuais irrelevâncias, as considerações desfilosóficas de agora... a delicadeza de teu comentário reforça essa minha intenção. Passei hoje por teu Caderno de Gritos, li muitos poemas, linda e exata aquela ideia sobre o silêncio em seu modo de auscultação... Grande abraço, amigo! E um ano bem bonito pra vc.



Denise, minha querida, obrigadíssima pela visita e pelos votos! Desejo que o teu 2012 seja feito de dias felizes, que constantes sejam as presenças alegres e que cada vivência solfeje uma ideia artística! Beijinhos!!

Anônimo disse...

Adorei o seu blog minha cara, não ha nada mais interessante que uma dama dos livros. Estarei vindo aqui mais veses apreciar seus pensamentos.

Ezequiel disse...

Olha só,mudou a cor de fundo...muito bom,muito bom...

Ângela Calou disse...

Ronnison,
obrigada pela visita. E parabéns pelos teus desenhos! Abraços!


Ezequiel,
sim, foi preciso. Hoje prefiro esse gesto claro como fundo das palavras dos textos que foram ou estão por ser.

Drica disse...

Olá. É que eu fiquei curiosa para ler o seu livro e gostaria de saber como faço pra consegui-lo.

Rafael disse...

Oi Angela...passando só pra divulgar um blog novo,desta vez uma tentativa mais filosófica:

http://tiraniadodesconcerto.blogspot.com/

E tu...como tá?

Beijo.

Ângela Calou disse...

DRICA,
Olá! Agradeço o seu interesse pelo livro. Pode, por favor, me passar algum contato de e-mail?



RAFAEL,
O teu primeiro texto em Desconcerto trata justamente do que tenho lido nos últimos dias. Gostei muito.

Ando em tentativas de literosofias, no modo on da vida-dissertatio. Queria muito mandar pra você um exemplar do Górki, falta só o número de tua casa, rsrs.

Beijo!

Fanzine Episódio Cultural disse...

Lágrimas de Areia

Lá estava ela, triste e taciturna.
Testemunha de efêmeros conflitos,
Com um olhar perdido no tempo,
Não exigia nada em troca
A não ser um pouco de atenção.

Sentia-se solitária, oca,
Os homens admiravam-na pelos seus dotes.
As crianças, em sua eterna plenitude,
Admiravam-na muito mais além...
... Mais humana!

De sua profunda melancolia
Lágrimas surgiram.
Elas não umedeceram o seu rosto,
Mas secaram o seu coração,
O poço da alma,
Aumentando cada vez mais
A sua sede.

Lá ela permaneceu; estática, paralisada!
Esperando que o vento do norte a levasse
Para bem longe dali!

O dia começou a desfalecer.
Seu coração, outrora seco e vazio,
Agora pulsava em desenfreada arritmia.
Desespero!
A maré estava subindo...

Em breve voltaria a ser o que era:
Um simples grão de areia.
Quiçá um dia levado pelo vento,
Quiçá um dia... Em um porto seguro.


Do livro (O Anjo e a Tempestade) de Agamenon Troyan

Elania Cavalcante disse...

Ângela, como faço pra conseguir teu livro?

saudade

bj