Entre arcanos e arcanjos

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

(Foto de Renê Fernandes, João Pessoa - 04/10/2010)

Ontem, Miguel Arcanjo passou pelo meu sonho. Olhou-me como se eu fosse uma completa vagabunda de impressionante ar de desdém, e salivando-me a cara - tamanha pressa e raiva cabidas em cada palavra - , disse-me num sobregolpe:

- O silêncio é o fruto da vaga impressão de que, no futuro, quem te espera é a louca, é a fera feita de fome: a solidão. Macerada hera, invasora, meretriz, mera atriz dizendo: "sou, ou pensaste mesmo que, comovida, eu não viria?"

Estive certa de que, feito tal proferimento, voltasse com as mesmas raiva e pressa às coisas suas... isso de matar demônios e similares... Enganei-me. Dobrada a violência, tocava-me o rosto com seu hálito-eucalípto de anjo, cuja força imitava o bofetão de avantajado Gulliver:

- Os olhos profundos serão, no teu rosto, duas tristes cicatrizes, dadas como marca d'água de um pretenso crime: o sequestro das imagens, a ousadia do desejo de olhando, além de olhar: ver - usando a razão, que é tua mera lamparina. Deflorarás pêssegos; tocarás o ventre da terra e, de teu ventre, saberás pelo toque de outro; sentirás o olor suave da primavera; ouvirás a flauta doce do bico dos pássaros - para todos esses, crê, haverá preço também. Saibas que serás cobrada, outrossim, no teu mundo, pelo exercício do pensamento. Por pensar muito, será de riscos e dobraduras a tua pele. Por pensar muitíssimo, será de feridas, fendas abertas pelas pedras que te arremessarão, pois neste caso, serás inevitavelmente louca (Dizem que "os loucos são os melhores"... acrescenta a isso: "de se acertar com pedras"). Por pensar pouquíssimo - ah! que aqui, de início, nada te levam, ao contrário, dormirás apaziguada pela insuficiência de tua possibilidade significante e significada. Pensando nada, de tão vazia, serás leve. Até que um dia, desconfiarás, por alto, do império de tua burrice, então como os demais, enfrentarás o desgoto crepitante da descoberta de uma ilusão. Executada a lei diabólica do uni-inverso, da soma de dívidas que chamaste vida: nada te sobrará.

Perseguida em meu último subterfúgio, o reino dos sonhos literofantásticos, acordei. Desperta, não vi, pelo resto do dia, Miguel, o fiel. Vi, porém, no porteiro do prédio, no motorista do ônibus, no moço da pipoca doce, na senhora do cachorro quente com batata palha, no meu professor de ontologia, no gatinho siamês das proximidades da sala 512 e em meu reflexo na poça d'água de mar, os mesmos olhos de raiva, de pressa, de vontade de massacrar.

14 comentários:

Anônimo disse...

E apenas o silêncio pode perturbar o silêncio...desses encontrados em guardas-chuvas que há tempos não se usam, ou na voz doce de um anjo, enjoativa-mente belo.

p.s. e me parece que depois de duas dobras voltamos...sempre.

Ângela Calou disse...

"Então perderei o equilíbrio, perderei o senso da justa medida, e rodopiarei, rodopiarei indefinidamente..."

ah que sempre... há que sempre.

Denise SCARAMAI disse...

bem-aventurados os que pensam,
e proferem palavras que ferem
com o propósito de se defender!

há que ser forte e tão intensa
quanto as palavras do arcanjo!

Ângela Calou disse...

Ah que serei, Denise. Da intensidade do Arcanjo ao obscurantismo do Arcano, caso precise.

(Linda!! Sempre fico muito feliz quando vc vem, um beijo)

ezequeil disse...

foi mal...mas estou na lama da ignorância...ehehehehe

Ângela Calou disse...

E quem não tá, Haze-quiel? quem não tá? rs

(curioso, há pouquíssimos minutos pensei naquele teu último texto, o que ainda não falamos sobre...)

Janaina Cruz disse...

Por isso nossos olhos devem ter sempre a curiosidade amorosa, e o cuidado amarro com tudo que nos acontece, e que possamos ouvir as flautas com notas doces, contaminando o nosso querer... As veredas são cheias de surpresas...Menina eu te sigo. :)

Ângela Calou disse...

Janaina,

Obrigada pela leitura e pelo comentário. Que visitei teu blog e tb te sigo,nesses dias em que a "surpresa" tem sido exatamente essa "curiosidade amorosa".

Abraços.

Unknown disse...

minha cara, esse texto seu foi um dos mais fortes palavriados que aqui li.. um confinamento que, para muitos, é descartado, driblado.. não posso julgar qual saída é a reparável, não sei.
Beijos, Angela! Um feliz 2011!!

Ângela Calou disse...

I.B.G.

Nice pics!
Thanks for your visit.

Ângela Calou disse...

Obrigada, Bel. Fossem minhas as cartas, Arcano XXI para vc em 2011. Beijos

Rene disse...

uma foto minha, adoro vê-las aqui

MissNothing disse...

Quisera eu comprar as palavras e aprender a usá-las...
Enfim, não sei escrever os tais "Poema elogio", mas posso dizer que a sua escrita serve de inspiração pra muita gente! Fantástica !

Milena disse...

Professora .. Fiquei encantada com seus contos , frases , poemas e muito mais . Parabéns Prof