Da maternidade

sexta-feira, 7 de agosto de 2009


Pequenas bolhas nos pés de Hilde Asnienberg. Raquíticos ratos roendo a roupa do rei de Roma, pensou. Não eram ratos, desses feios e imensos, eram catitos, que guardavam ainda alguma ressalva antes do golpe de esmagamento: olha mamãe, esse até que é bonitinho! Hilde Asnienberg tinha 28 anos e nenhuma vocação para a maternidade. Para o matrimônio menos ainda, pois perguntava demais, inquietava-se demais, e o pior: nada podia em termos de cozinha. Chamavam-na de mãe há sete anos, e ela: Hilde Asnienberg, olhava para aquele menininho postado à sua frente com olhos enormes e insaciáveis de informações sobre o mundo. Pergunte a seu pai, seria o mais acertado a se dizer para Hilde, se houvesse ali um pai à paisana. Esse, porém, não era o caso, e o menino era quase do tamanho da TV: sim, sim, os vermes poliquetos do fundo mar se alimentam de detritos, entendeu?, de detritos. E empurrava com a ponta do joanete o menino para fora do espaço entre ela e a TV. Não tinha paciência para essas coisas de explicações mensuradas, exatas, definíveis, preferindo apenas observá-lo quando era preciso sobre o carpete da sala, montando transformers com sua imaginação e os mesmos olhos desumanamente insaciáveis. Chamava-o para comer como as mães o fazem: senta e come pra ficar forte. Ficar forte pra que? Pra crescer e fazer coisas. Que coisas? Come. Comia. Era bom vê-los ali sozinhos, numa casa parecida às de papel. Em sua cabeça-oficina Hilde chegava à conclusão de que a maternidade empobrecia as mulheres: veja Carlito, veja só a Luíza, parece que junto com o leite lhe sugaram a vida pelos peitos, presa que está no minuto do parto, ali, sem força pra ela mesma, num tempo que passa sob horas paradas. Carlito não entendia no minuto e meio em que a fitava, antes de retornar (e com aqueles olhos, deus do céu!) para os brinquedos espalhados e assentir positivamente com a cabeça, a fim de esboçar alguma concordância. E era assim por horas, até que Hilde Asnienberg animava-se, trocava o roupão rosa por botas pretas e pulôver amarelo, e caminhavam até o parque para tomar um sorvete de baunilha. No menino vestia um gorro azul comprado numa feira há muitos anos, embora ainda muito conservado estivesse, calçava botinas, luvas e punha um cachecol em redor do pescoço. Para que mamãe? Para proteger as pessoas do frio que sai de você. E desistia do sorvete quando ao relacioná-lo ao frio, preferindo pipocas com calda de açúcar por cima como nos circos de Chapecó. Hilde não dizia, mas sem o pequeno, calaria para sempre as voltas de seu pensamento, embora Carlito, nunca tivesse, em verdade, mudado radicalmente a rotina de suas ações. Eram sempre um “nós”, nunca um Carlito e uma Hilde. Eram um nós que não precisava se dizer para se escutar, e o menino na sua pouca idade não exigia mais que isso, sabê-lo era suficiente, sem extravios desnecessários da voz bonita de Hilde. As pessoas dizem eu te amo para as pessoas que amam, Carlito. Costuma ser assim num dia bonito. Escolhem o lugar, andam a resvalar na cocheira das idéias a melhor palavra, a melhor construção. E dizem temerosas: eu te amo, com medo de que tudo mude, e que no ato da fala se desfaça o sentido do sentimento no outro que se põe de orelhas bem abertas à sua frente. À minha, mamãe? Não Carlito, a deles, aos que recebem as frases de amor sinestésicas. Não querido, eu disse sinestésicas, é coisa que se sente com muitos sentidos apenas, enquanto anestésicos são feitos para não sentir. Quero um anestésico, mamãe. Pra que precisa de um? Pra não sentir o que você sente. E o que eu sinto, Carlito? O que eu sinto?

3 comentários:

Lílian Rose Black disse...

Q lindo!!!! *-* Eu nunca quis ser mãe, não tenho a menor vocação para isso e acho q uma criança suga mesmo a nossa vida, enchendo-a de responsabilidades irritantes, tomando nosso tempo, sossego, e por vezes não retribuindo um terço do que os criadores deram p/ ela. D qualquer forma depois q acontece se apegar é inevitável, né? A pessoa acaba perdendo a individualidade e vivendo p/ o outro, em função do outro. Acho q tds deveriam continuar questionadores depois d crianças, deveríamos responder às perguntas dos pequenos pacientemente e incentivá-los a continuarem perguntando, mas eu sinceramente não tenho paciência. =P Eu gostei da sua observação ao meu texto: escrever pode também, além de aliviar o escritor, dar algumas golfadas de oxigênio também ao leitor, eu não tinha pensado nisso...
Adorei o texto, mto mto bom ^^
bjos

Ângela Calou disse...

q comentário massa!
obrigada...tb às vezes me sinto Hilde,(embora sem a radicalização que ela sugere) e até penso num Carlito me perguntando as coisas do mundo, mas penso só pra desistir no minuto seguinte...

o q oxigena mesmo eh isso q tu fez... ver o texto recriado pela linguagem e pelos olhos do outro em sua incursão...assim a escrita não se cala nunca, apenas se conta de modo próprio , tendo ou não a mesma conotação.

=)

Isac disse...

Perfeito o texto. A eterna curiosidade infantil também me fascina e me instiga a infinita vontade de responder meus questionamentos e incertezas.

"O que eu sinto?" =)

Muito bom!