Do oco no meio das falas e coisas, talvez

sábado, 12 de dezembro de 2009

Pensei três vezes antes de dizer ao médico – que tomava meu pulso, como se fosse seu. Não sei doutor, foi coisa de ontem pra hoje. Apenas peguei uma caneta bic, dessas baratas que a gente perde em cada cômodo da casa e escrevi. E foi aí que essa veia latejante acima da sobrancelha esquerda cresceu à revelia de minhas ordens, e agora está assim, como o senhor vê...um problema...meu pensamento vazando para fora, e todo mundo vendo. O senhor não gosta muito de sua sogra, hein? Ora doutor, não se aproveite da minha situação...! Vê que não posso chegar em casa assim? Com todos esses pensamentos soltos vazando para fora da cabeça por essa veia latejante e transparente que não me deixa escondê-los? Sim-sim, receitarei um anti-inflamatório para conter a irritação de seu hipervaso. Anti-inflamatório, doutor? Não há meio de fazê-los recuar de volta para dentro? Imagine só o meu constrangimento doutor, o meu constrangimento! Que há de se fazer, senhor? Guardou-os por muito tempo, comprimindo-os num cubículo de quatro metros por quatro, é coisa como mola meu senhor, quanto mais se empurra para baixo, com mais força volta! Guardou-os numa sala escura, sem luz, nem porta, nem brecha, e agora, que eles vazaram, não há jeito de rearranjar as galinhas no poleiro antes do entardecer... Terei de ficar assim, doutor? Mas assim não passo sequer da porta do prédio! O porteiro, só Deus sabe como gosto de ser simpático com aquele velho de dentes amarelos pronto para desmembrar qualquer inquilino por menos de cinqüenta reais! E antes o que só Deus sabia, será agora assunto do domínio de todos... Como vou disfarçar minha repulsa diante de seus dentes amarelos? De seu "boa noite meu amiguinho"? Que farei, doutor? E quando tiver de dividir o elevador com a gostosíssima do andar de baixo? Que farei com todos aqueles potes de sacanagem à mostra? E minha mulher, doutor? Vai saber que eu odeio noz moscada na comida, e isso é apenas o início...vai saber de todas as reuniões que não aconteceram, e digo mais! Vai conhecer três ou quatro nomes que não o dela, três ou quatro pares de pernas que não as dela roçando as minhas... Posso providenciar toalhas, talvez o senhor possa enrolá-las na cabeça e, desse modo, disfarçar os mais perigosos... Minha nossa! Amanhã é o amigo-secreto do trabalho, tem noção do que seja isso, doutor? Comprei um vinho no meu vale-alimentação, num supermercado de beira de esquina, um São Braz, tem idéia do que seja esse estupro da língua e do gosto? Coloquei o líquido numa garrafa antiga de um Petrus da safra de 1995: 2.800 dólares em mercado brasileiro, doutor! Doze reais num supermercado nauseabundo! Ora, um vinho desses é troféu sobre os móveis de qualquer um, é insígnia de riqueza, duvido que o abram... Mas agora vão saber de minhas intenções de barateamento dos custos...de meu gasto cafajeste de doze reais. Mas isso não é o pior...e se eu não gostar do presente que receber? E se for..."Jesus, o maior psicólogo de todos os tempos", que faço? Como sorrir sério e fingir emoção com aquele clássico da literatura em minhas mãos, se no canto esquerdo um pensamento-palavrão despontará aos olhos de todos? Acalme-se, meu senhor: já pensou em não mais pensar? Assim resolveria seus problemas! Não pensar apenas, não pensar, como um homem que trabalha numa fábrica de sandálias por dez ou doze horas todos os dias cheirando cola de sapateiro e já sentindo esse odor, pelo tempo de exposição, como um verdadeiro Imperial Majesty, doutor? Sim, isso mesmo, apenas não pensar: e sua veia latejante minguará na conta de três ou quatro dias! Apenas não pense, vá para casa, tome seu anti-inflamatório, retire da cabeça a toalha e durma, durma acordado, não pense. Cada vez que pensar, a saliência aumentará, sob pena mesmo de explodir sua cabeça com o senhor e tudo! Entendo doutor, e confesso que também não vejo outra saída, o senhor, doutor, é um técnico! Que posso eu contra a palavra de um técnico? Haverá, portanto, um oco no meio das falas e coisas, paz e acalanto na sombra espaçosa da nadificação de meu pensamento. Quanto lhe devo pela consulta?...

"[...] a exaustão [...] faz invencível a tentação que esta vida traz consigo: não mais pensar" - Simone Weil

(FRANCIS BACON: “Auto-retrato”, 1971 - óleo sobre canvas, Paris Centro Georges Pompidou)

4 comentários:

Anônimo disse...

A resposta é sim.
Mas não desses sins que se negam a Camus.

Antes um sim sincopado na charada tosca do viver.

e tão logo a resposta se torna não, à Camus.

Ezequiel disse...

kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk

kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk

permita-me rir!!!

muito bom,muito bom,muito bom mesmo!!!

achei que tu só escrevia coisas soturnas,mas vc vem e me surpreende com humor puro!!!!

parabéns minha escritora anonima preferida!!!

Hérlon Fernandes Gomes disse...

Perfeito, Ângela! A verdade pura é certamente uma doença! Que a mentira nos seja permitida sempre!
Abraços, amiga!

Ângela Calou disse...

abraços Herlitus, e saudade daquele momento "místico", rs.