Nunca Mais - por Ezequiel Matos

domingo, 13 de dezembro de 2009

A azia parecia corroer-lhe. Sentia sede, fadiga muscular, turvamento na visão, raciocínio embaralhado,um gosto de ferrugem e fel por entre os dentes, sarro de cigarro no cabelo, dedos e narinas.

Estava debaixo do chuveiro há algum tempo mas sempre que respirava tinha a impressão de inalar éter ou vodka vagabunda. O punho ferido e levemente inchado. O maxilar parecia ter sofrido uma luxação. Uma circunferência arroxeada tingia-lhe a coxa. Nenhuma perfuração de bala; nenhuma costela quebrada; nenhum talho significativo. “ A coisa pode não ter sido tão feia”. Tentava minimizar o medo caustico da amnésia alcoólica. O ladrar do cão no quintal vizinho ameaçava romper-lhe os tímpanos.

Saiu do banho. Uma sudorese fria cobria-lhe a pele. As mãos começaram a tremer. Agora que estava em casa e parcialmente limpo, tentava reconstituir a noite anterior,mas o que verdadeiramente lhe afligia era a figura daquela mulher,que nua,estava ao seu lado quando despertou. A lembrança da fuga da casa dela o fez rir. Envergonhou-se profundamente. Sonrizal, engov e pastilha para a azia. “ Nunca mais eu bebo”.

...

De que serve escrever? Qual a utilidade desta atividade egoísta de cutucar pústulas esperando que as gotas de pus formem sentenças inteligíveis? De que valem estes sentimentos obsoletos? De que valem os versos decorados? De que vale toda a canalhice e covardia de tentar impressionar através das palavras? Ah! Mas que grande intelectual este,não?! Leu um livro de Kafka, assistiu a um filme do Kubrick, conhece uma música de uma banda inglesa e se considera o farol que iluminará as mentes reféns da escuridão. O que ganhei com todas as cartas escritas? As resenhas com alijo acadêmico? Os microcontos que nunca passaram de cópias maquiadas?

Levantou, o quanto pôde, o queixo. Respirou fundo. Deixou cair, pela décima quinta vez daquela tarde, a caneta. Acreditava ser uma piada mal escrita. Juntou todos os manuscritos. Guardou-os numa pasta. Enquanto procurava o álcool para fazer uma pequena fogueira pensou na sopa de letrinhas que tomava na infância.

Jamais escreveria algo além de uma assinatura.

...

Precisava de dinheiro. Fez hora-extra na tarde daquele sábado. Produziu como nunca. Não detestou o chefe imediato,não mentalizou coisas ruins em relação ao dono da fábrica,não odiou a economia mundial pelo seu poderio excludente. Não se permitiu ter tempo para pensar. Eram só ele e os botões. Apertou-os. Fez o controle. Agiu em união com a máquina.

No começo da noite estava em casa. Vazia. Recordou que priorizou a profissão em detrimento da família. Não foi um bom marido. De outra forma ela não teria sumido. Não foi um bom pai. Ela poderia ao menos ter engravidado para dar-lhe a certeza de que era inapto à paternidade.

Levou o botijão de gás para o banheiro. Um isqueiro. Meio quilo de veneno para rato. O velho revolver que herdara do pai. As balas já haviam sido postas no sol previamente. Tirou as lâminas do barbeador. Encheu a banheira. Acomodou-se dentro.

De tão determinado a ceifar a própria vida nem se deu ao trabalho de ensaiar um “adeus mundo cruel.”

...


Às 20:00 H, como combinado, se reencontraram. Bela noite. Bar lotado. Uma variedade aprazível de fêmeas esperando o início dos ritos de acasalamento. 21:30 H. Riam, contavam piadas. Um deles, de olho na morena da mesa ao lado, não bebia por que tinha que trabalhar no outro dia. Um outro, inspirado pela velha canção que tocava ao fundo e com a desculpa esfarrapada de mandar um bilhete pelo garçom, metrificava,no improviso, um soneto. O terceiro não tremia, mas, provavelmente já não possuía ciência do que acontecia.

As juras racionais se mantém quando somem as tentações.

Ezequiel Matos 13/12/09 01:30 H

Em agradecimento à Ângela e a essa tristeza que não quer passar.

4 comentários:

Ângela Calou disse...

sim, sentenças-pútulas escritas a pus, a sangue, a suor, à vaziez, a choro, a riso, à mentira, à verdade, e até à mão...quem é ele? o cara q solta a caneta quinze vezes (talvez a caneta é que o tenha soltado)? o cara que enche a banheira devagar, na conta certa pra afogar a estranheza de ser? o cara do bar, o do soneto ou o apagado? eles não têm nome, nem podem ter, pq são apenas um outro-mesmo mto bem desenhados..eu gosto do modo como tu escreve, e dessa tua mania tosca de ver, de ver mais do que se supõe.

=]

Ângela Calou disse...

desorbitado lacunar escritor anônimo preferido ;)

Hérlon Fernandes disse...

A profundidade psicológica dessa escrita é muito verossímil! Adorei!

Juciê Lacerda disse...

A real angústia-suicídia!