Neverland

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Que mania é essa de expulsar o pobre do poeta da cidade, Platão?

Como seria uma cidade sem poetas? Seria um condado anestesiado, com monólitos imensos e blocos de vida amorfa. As pessoas teriam gosto de farinha de milho estragada na boca, e a pele seria pesada e adoecida por falta de sol e brisa. Ora, teríamos pilhas de papéis cheirando a mofado, contendo a lista infinita dos conceitos possíveis. O estatuto ontológico do ser, o princípio de razão suficiente, a natureza essente das coisas do mundo... Sim-sim! Tudo isso teríamos em dispositivos fabulosos, hábeis na produção do cerco à vida... Mas o mundo mesmo, as coisas e o ganido forte do que é vivo, isso não caberia numa Cidade-sem-poetas.

Uma cidade sem poetas nem mesmo um nome teria! E todos os dias seriam o mesmo dia, e todas as horas, apenas mortificações em 60 minutos. Os sinos das igrejas parariam de trabalhar e os anjos-meninos, escondidos nas nuvens de chuva, marchariam em retirada. As nuvens e a chuva fariam o mesmo... Os encontros entre amigos (de fato, é apenas uma suposição essa coisa de amigos numa cidade como esta) seriam sinistras emplastificações de sorrisos, reconhecidos por códigos de série colados num molar esquerdo, e nem com o mais potente instrumento de auscultação o coração de tais homens e mulheres deixar-se-ia perceber.

As pessoas seriam como máquinas de vender coca-cola: uma moeda e um botão; e as crianças conversariam sobre o câmbio e as taxas reguladoras da política de redução dos recolhimentos compulsórios sobre os depósitos bancários. As aquarelas e o arco-íris teriam uma cor apenas, e poder-se-ia, finalmente, banhar-se duas vezes em um mesmo rio. As moças comprariam seus príncipes em doze vezes, na mesma loja onde suas mães lhes compraram há alguns anos o sonho desse mesmo príncipe. Nos circos os palhaços teriam o rosto limpo, havendo a hora certa para rir, indicada no catálogo da programação do espetáculo vendido junto ao ingresso.

Ouso dizer ainda que, nessa cidade, as avós fariam apenas miojo para o almoço de domingo e que o único vestígio de música seria o som dos pés nas ranhuras do asfalto quente e insondável das ruas. Nem me atrevo a falar do amor, pois sem poetas, ele seria um deslocamento constrangido, e, não tendo a quem inspirar, logo sucumbiria num frêmito exangue de solidão. Numa cidade sem poetas seria barata, prática e segura a ordem instaurada da monotonia, com seus cálculos infinitesimais sobre seres de finitude.

Então, não se leria Rimbaud, Pessoa, Quintana, ou João Cabral... e desse modo, nunca a eternidade no mar misturado ao sol, nunca o humano em demasia nas portas da tabacaria, nunca a salvação por letras de um afogado, nunca um Severino entreaberto com a ponta de dedos aguerridos... nunca um arriscado gole na sede do estranhamento que é ser... pois poetas não haveria, e nem tristeza ou alegria, apenas o fato cru – empobrecido, biológico, redundante.


(Gosto de Neverland pela remissão à circunstância alegre de sua escrita. Salvo Neverland em caso de acidente, de incêndio de fogo ou loucura do coração. Salvo de tudo, no bolso ou nas mãos. Foi publicado na Mambembe, Ano I, Nº 3, 2010, revista dirigida pelo meu amigo Carlos Pontes que, muito terno e gentil, postou sobre isso no blog de Juazeiro http://blogdojuaonline.blogspot.com/2010/09/nasce-uma-escritora.html)

2 comentários:

Anônimo disse...

Se Platão expulsa a todos
Os homeros da Cidade,
Qu'enorme calamidade!
...Quem somos sem rap-sodos?

- Meros moeda e botão,
Máquinas de coca-cola...
Urbe assim não dá, não cola:
Tenha dó, Senhor Platão!

(Também graças a Neverland, e ainda por mediação do comum amigo Carlos Pontes, pudemos travar o primeiro contato, Senhorita Calou: e posso agora deixar-lhe esta Saudação Tigelírica. Parabéns!)

Ângela Calou disse...

Obrigada pela visita, Senhor Poeta. Feliz por serem as pontes, em se tratando de Carlos, mais que um nome.
Abraços, de Calou.