Alameda do Castelo - II Voz

sábado, 9 de janeiro de 2010

Sólido limitado por polígonos planos – dizia a previsão dos dicionários. Enquanto isso: nada. O relógio tratava de relativizar o tempo, os passos, os planos e intenções...precipitadas! Quase sempre precipitadas, disformes, distraídas quando os olhos tomavam o vento, que vindo do outro lado da cidade, cansado que estava de seu círculo comum de epidermes carentes de refresco, parava ali por desaviso, em busca de um outro-imaginário sobre o qual pousar em lenta distensão. Levantou-se. Fez barulho ao colocar sobre a mesa de vidro o copo de alumínio velho, que tratou de amassar nos lados, encontrado naquele lugar como resto vivo de um mosaico extinto construído sob mínimos de memória e mofo...uma avó remota, um tio louco morto aos cinqüenta e três, uma negra velha a cuidar de filhos que não os seus. Vestiu-se. Não costumava calçar botas. Mas também, não costumava chover. E todas aquelas coisas e pessoas e imagens de coisas e pessoas e imagens que nem existiam mais. Melhor não ter pisado ali nunca outra vez. Mas teimoso que era, antes uma agulha envenenada acossando o peito amortecido pelo espólio triste dos anos, que uma postura positiva diante de qualquer recomendação. E se visse uma alma? E se visse um corpo-vertigem-morto-andante? Um corpo morto em seu veio espectral, vestindo a roupa branca dos mortos e andando de uma parede à outra para ser notado, posto alimentar-se do medo dos homens? Riu-se sozinho do tamanho daquela bobagem. Fantasmas não existem, Isabel! Não existem! Tire da cabeça esse lençol branco com furos nos olhos, pois não é o susto o que me traz, mas apenas o seu ridículo! – lembrou-se daquele dia de São Camilo, quando esteve com sua prima em um sitio parecido àquele, se é que fosse o caso de não ser aquele. O fato é que Isabel estava morta agora, e caso se lhe aparecesse oculta sob a brancura do pano, não pediria que o arrancasse da cabeça como daquela vez, pois teria medo de passear a vista sobre a prima morta: o ressequido dos globos, pupilas sem foco distantes de seu negro originário, o cheiro das flores do enterro, o roxo podre dos cemitérios, o gosto salgado insinuado em sua língua, gosto daquilo que não saiu pelos olhos quando a viu sem que ela pudesse olhá-lo junto e perceber seu desespero-escondido a um só e mesmo instante. Dissera que nunca o rio, nunca o rio Isabel. Mas Isabel, intempestiva, tentou o rio, e não resistiu aos gritos de demência das torrentes perigosas daquele janeiro. Ele nada pudera: por que molhar as roupas secas se talvez se tratasse apenas de mais uma travessura de Isabel? A prima mais velha com suas caixas de sapatos para pegar borboletas, em suas carreiras desmedidas na caça aos calangos, no beijo acarinhado na bochecha do avô que a preferia a todos e não se constrangia em dizê-lo, ou no vagar dos dedos pelos cachos de seu amado Céu – coisa que nele, homem de modos contidos, era um pequeno rasgo de dor, onde sem muito se procurar logo se via o sangue-segredo de uma ferida mal costurada. De costas, não quis mais reparar em coisa alguma, nem evocar lembranças, assim sozinho e sem força para levá-las até o fim. Chutou pedras, empoeirando as botas devidamente calçadas para aquela ocasião. Conferiu as chaves nos bolsos, ignorou o copo de alumínio derrubado pelo vento (ou por um lençol-flutuante?) em seus pés. Enfim que fez o seu caminho de volta, pensando que dali a algumas horas teria de avaliar mais uma construção com a típica paciência de engenheiro às vésperas da aposentadoria. Enfim que apressou as pernas, reincidindo outra vez, em pensamento, nos poliedros agigantados definidos mui sabiamente pela técnica dos dicionários.


(Fragmento de uma colcha de retalhos)


(Foto de Renê Fernandes - Rua qualquer por trás de grades quaisquer/ Janeiro de 2010 - Salvador-BA)


6 comentários:

Samuel disse...

O que são as palavras diante de fatos?
Descrição? Tradução? ou simplesmente palavras?...

Ou melhor: o que são palavras diante de coisas? diante do simples vago e indefinido sentido da palavra "coisa"?...

Nada de dicionários, gramáticas ou velhas enciclopédias, a resposta é, tão somente, m-e-t-o-n-í-m-i-a: "nunca o rio, nunca o rio Isabel. Mas Isabel, intempestiva, tentou o rio"

p.s. Isabel é morta...

Ângela Calou disse...

sim Zamul, morta.
abraço desencontrado

Matos disse...

eu li...mas vou ter que ler de novo. Sabe como é,né? O analfa aqui tem que tentar outra e outra vez! Comentarei com propriedade ( assim que desemrabaçar o teu texto da minha cabeça) em breve.

Ângela Calou disse...

essa Alameda e suas árvores...coisas que vc conhece bem, Matos, meu jovem, minha aparição querida, rs.

Francisco José disse...

Parabéns pelo conto, li o texto na revista Mamíferos, agradeço pela oportunidade de lê-la em papel e tinta, nesse mundo das palavras vc caminha com passos desenvoltos e elegantes. Sem esquecer que todo o conjunto visual do blog é de uma beleza particular (cores, imagens, etc), a foto do perfil então...

Ângela Calou disse...

Obrigada, Fran Zé, fico feliz de vc ter lido. =]