Para que nunca-nunca soubesse

terça-feira, 6 de março de 2012


Mädchen mit Katze - Heinrich Vogeler (1872-1942)


Duas nuvens pesadas, em promessa de compromisso, aproximam-se a cada minuto, sorvem a abertura de um quarto de céu lilás. Embalados pelo vento ameno, detritos conhecem detritos, mudam de lugar transportados pelos pés de crianças animadas que carregam, de lado a outro, o cuidado de suas babás. 


Camila devolve à mesa o estalido do copo. Vagueia pela debilidade do betume velho a ajuntar os blocos de cerâmica negra no chão do café. Retorna aos lábios finíssimos de Ezequiel, relê sorrisos capturados nalgum passado. À procura de arcanos nos arcos das sobrancelhas, depõe os óculos sobre os riscos azuis do guardanapo. Aperta os pinos e retoma os lábios – que frágeis lhe parecem como a memória dos sonhos naquele instante em que a vigília é ruptura, inescapância, incandescência de importuna imposição. 


Pássaros despertos tornados mínimos dispersos grafam voos distantes sob o fim da paisagem. Passantes levando sacolas prescindem estranhamente do ódio e da pressa. Quatro pipas paralelas abandonam seus passeios e, o garçom, à altura da janela, sugere que a tempo troquem de mesa, a chuva ameaça descarregar. 


Há casos em que a luz dos interiores é feita em quantidade para mal-iluminar. A sombra leva dos rostos um lanho estrábico de impedimento, o escuro conturba a visão para que livre seja nos ares o som das gargantas em ecos incautos de revelação. A noite viabiliza o cheiro das torrentes íntimas de confissões necessárias e os olhos de Ezequiel procuram a máquina de fotografar que, no parque próximo, enxerta na natureza a dupla mira do globo ocular. Constata que Camila dispõe, como antes, parte do cabelo por trás da esquerda orelha miúda e, também como antes, assim sem concreto empecilho e completamente dado à visualização, muito pouco de seu rosto é possível considerar, conhecer, adensadentrar. Os joelhos descobertos e as mãos protegidas do mundo na concha uma da outra. 


Garfos perfuram com facilidade a carne macia de um bolo-pudim. Nacos de impressionismo salpicam a boca de uma boneca – pendida no teto, parece leitora dos quadrinhos de jornais velhos colados à parede na vez de decoração. Ondas de expressionismo chocam-se à micrológica da saliva de Camila, ela enlaça a toalha e a língua em dizeres entrechocados e imagéticos. 


Lívido é a palavra literária para Ezequiel – pensa depois da recusa da água tônica oferecida discretamente pelo mesmo garçom. 


Não há modos de fugir dos olhos, se se usa os olhos para tanto. O olho abriga os ângulos e as geografias dos vincos da verdade e a verdade, de blocos de pedra faz corpos revestidos de aberturas. Imagem submetendo conceito. O choque. O silêncio se debatendo, tal borboleta sob as redes e alfinetes de um impassível colecionador.


A palavra às vezes esmurra a boca para fugir da palavra e encontrar o silêncio e pensar usando silêncio ao invés de palavra:


– Fui eu, sim, Ezequiel. Roubei o teu boneco Playmobil. Quebrei o pezinho dele. Joguei-o, de medo, debaixo do guarda-roupa, para que nunca-nunca soubesse de meu crime de menina, e assim, naqueles dias em que teus sonhos repeliam a prefigura da ruína desse vago de esperanças, não me quisesse mal, ainda que mal fosse apenas um olhar de desgosto atravessado pela lembrança do brinquedinho estragado.


2 comentários:

Ádlei Duarte de Carvalho disse...

Gosto demais!!!

Forte abraço!

Ângela Calou disse...

Sempre grata pela leitura, Ádlei! Grande abraço!