A teia e a aranha: mosca distraída eu fui

quinta-feira, 20 de agosto de 2009



Não imagino o que aconteceu. Sei apenas que nos doze dias subseqüentes sonhei com Céu e ele morria atirado ao mar, mãos a pressionar ouvidos, que sangravam. Não voltamos a nos ver, e Céu nesse tempo reduziu-se ao porta-retratos comido nas pontas por cupins famintos que saíam de meus cabelos, instalando-se ali para sempre, na madeira podre e pobre de um enlace interrompido pelo nosso egoísmo, infinitamente maior que aquela náusea alegre que se quis chamar amor.
Convencia-me, entretanto, a lembrar-me de que era Céu. O mesmo do balanço, das maçãs-do-amor dos raros circos en passant, da lama, do rio, das calças pegando marreca, do cabelo vermelho e despenteado, da fitinha azul no pulso esquerdo. Era Céu, e isso não mudaria, pois uma verdade que varia não pode ser entendida enquanto tal.
Do que falava não imaginei, na vertigem mortificante de seu fluxo fraseológico. Vim a descobrir apenas no décimo terceiro dia, quando Carlile chegou à cidade e todos os homens e mulheres esqueceram-se de seus ofícios encantados por suas sedas, tornando-se nossa vila um desassossego abrasivo, um oco avessado de zumbis mal resolvidos. Tinha há muito guardada a flauta, faltando-lhe apenas uma platéia de ratos sedenta por cada nota solta de seu som libidinoso. Carlile e os seus sabiam das artes do encantamento, teciam com fio de ouro a Mentira que a todos enforcaria.
Como ele pudera predizer com tanta fineza a invasão do décimo terceiro dia? Céu e eu, imergidos no plasma falacioso do engano. Céu e eu, que nos amávamos, amávamos agora a um terceiro. Que digo eu? Amor é outro.
Carlile vinha todas as noites, pois sabia do mal que nos fazia. Cada gole de seu desejo como pulverização do intocado escondido à sombra da face. Quando todos dormiam ressacados do dia, do escuro ela surgia. Céu e eu, mudos e enublecidos, assentíamos em nada dizer, e ela, Carlile, ria, tecendo o laço com seus novelos invisíveis, na conta certa para presas pequenas. Seus olhos eram como os de Céu, blindados à perscrutação. Mas eu escorreguei por eles como um gato egípcio, pois guardava no bolso direito o diamante finíssimo que arranharia sua proteção, Blau Wittlesbacher, alotrópica de carbono real caído das mãos de um anjo bávaro distraído, acampado desde janeiro nas nuvens do vento leste.
Aprendi com Carlile a dar quase nada de mim às pessoas, a enfear meus olhos ao olhá-las, pois tudo que me diziam era engano areento que o vento levava, como a areia que fica nos pés quando se caminha na praia. Aprendi a desaprender meus modos de menina e a sempre desconfiar. A sentir de sentimentos e intenções prévias com o toque das mãos, com o cheiro e a ponta da língua, e o mundo tornou-se assim um dado de desapego. O outro, o perigo em forma de gente.
- Que escondes, Carlile?
- A certeza de nada esconder...Não sabe ainda já não ser segredo o fato antigo de não haver mais segredos?...
Antes de entrar em sua carroça, coberta por cortinas vermelhas, ofereceu-me uma maçã. Não aceitei a tal maçã e o convite que vinha de brinde incrustado em seu sumo doce. Seria aceitar a morte da minha vontade, a coisificação de minha consideração pensante. Carlile era passado, cremado e atirado em um lugar feio como seu coração.


(Fragmento)

3 comentários:

danielandin disse...

Engraçado ter chegado aqui à procura de Deleuze.

Juciê Lacerda disse...

Melhor que o "próximo"!

La Belle de Jour?!

Angela Domada?!

Ângela Calou disse...

kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk

tou pensando em algo mais perverso,

hihoihoihoihiohiohihiohiohioiohiohoih

soh tu mermu juju!! :)